O jogo do pau não morreu e hoje quer fazer escola


     Espinheiro, hoje agregado a Louriceira e Malhou, já pertenceu ao concelho de Santarém. Afastando-se do litoral, já reconhecemos aqui os trajes dos campinos e as tradições que nasceram do trabalho nos campos e da ausência de distrações maiores que a lide do gado ou a agricultura. Mestre António, nos seus 84 anos, é quem ainda trabalha o pau e ensina quem deseje aprender a arte que começou a praticar na adolescência. Diz-nos que se jogava o pau por falta do que fazer: não havia televisão, não havia bares, não havia alternativas.
     O jogo, relata, tem a sua dose de “violência”. Sabe-se que outrora morreram pessoas, mas ninguém consegue contar ao mediotejo.net extamente quais os contornos da história. Terá sido um acidente, dizem, algo inesperado. O facto é que quem deseje aprender o jogo do pau tem que se preparar para levar umas “pauladas”. Mestre António chegou a partir um dedo e a levar algumas, mas também se sabe defender. Correu o país a fazer demonstrações do jogo do pau. E no dia em que partir será uma perda significativa para a modalidade.
     Quem o acompanha não vê o jogo do pau com a mesma violência. Sérgio Ferreira, 48 anos, encara a prática como uma “brincadeira”, um desporto , como outros, de convívio. Relata que em Espinheiro este “é um jogo sem maldade” e “não há grande técnica”, observando-se outros tipos de competição e manejo do pau no Norte do país, onde há escolas que ensinam a modalidade. Aqui o objetivo é atacar e defender-se, sem ser tocado pelo pau, num circulo de pessoas que fazem lembrar uma dança de capoeira. Explica-se que com dez pessoas o jogo tem mais ritmo e é mais digno de ser observado, mas ao encontro com o mediotejo.net só estiveram disponíveis cinco jogadores.
     A prática não é vedada ao sexo feminino e já existiram jogadoras. Hoje vai-se perdendo. É por isso que a Casa do Povo do Espinheiro deseje criar em setembro uma Escola do Jogo do Pau. Mestre António não acredita que os mais novos se interessem – “querem cafés e querem paródias”, argumenta, bem diferente dos tempos difíceis da sua infância – mas os restantes colegas mantêm algumas esperança, em favor da continuação de um arte que não querem deixar morrer.
     Ricardo Duarte, presidente da Casa do Povo, explica que o grupo do Jogo do Pau  tem mais de 30 anos e costumava estar integrado no Rancho Etnográfico que existia na Casa do Povo, hoje já extinto. Para não perder mais este marco cultural, a Escola é a derradeira tentativa desta nova direção. “Para manter a tradição do povo espinheirense será criar uma escola do jogo do pau, em que se pretenderá ensinar aos mais novos e a quem quiser e estiver disponível vir aprender o jogo do pau”, explica. “O jogo do pau é uma tradição dos nossos antepassados do Espinheiro”, narra, cuja história está algo perdida no tempo. “Estava presente nos pastores que viviam aqui na nossa terra e os serradores. Às vezes em alguns dos conflitos defendiam-se jogando do pau”.
     É uma arte de ataque e defesa, tendo já sido tentado associá-la às artes marciais por alguns entusiastas, mas sem sucesso. O pau é feito do ramo do marmeleiro, cozido posteriormente no forno e ficando a secar durante duas semanas até estar em condições de utilização. Ainda assim, partem-se imensos paus nas competições. Em Espinheiro quem distribuiu e coze paus é Mestre António, o único que domina o processo.
     Por um velho documento que os praticantes entregam ao mediotejo.net, ficamos a conhecer melhor as raízes da modalidade. Diz que “o Jogo do Pau não é exclusivo de Portugal, embora de forma distinta, ele é praticado um pouco por todo o mundo”. “Durante séculos em Portugal foi usado como técnica de combate pelas classes pobres chamadas plebeus, uma vez que o uso das espadas lhes estava proibido e usavam os paus, quer em situações de guerra quer para se defenderem de animais selvagens, como lobos e ainda muito em especial para resolverem certas rivalidades”.
     O texto prossegue referindo que “no Espinheiro, o Jogo do Pau provém dessas origens e tradições e perde-se na memória dos séculos, segundo relatos, a sua prática entre a população. Até ao ano de 1922 os Jogadores do Pau do Espinheiro marcaram sempre presença nos tradicionais festejos de S.Brás, lugar do Prado. Ao chegarem à localidade, os jogadores davam três voltas à Capela em sinal de respeito ao Santo e daí seguiam para a Eira do Sr. Henrique Inácio, onde se exibiam perante a presença entusiasmada de muitos forasteiros vindos de toda a região, porém nesse ano um homem da localidade Abrã foi morte e o Jogo do Pau esteve parado alguns anos, começando depois e embora com algumas interrupções chegou aos nossos dias, talvez devido a um grande dinamizador chamado João David Lourenço”, já falecido.
      É o relato que existe, nascido da memória popular, hoje uma folha de computador. Para os praticantes o importante é passar conhecimento, deste Jogo que se assemelha a uma dança, a um combate, e ao qual associamos a paisagens do ribatejo e as múltiplas tradições que hoje se vão esquecendo no rodopio acelerado e tecnológico das novas gerações.


Cláudia Gameiro 


26 junho 2016